Foi só depois que caí que pensei: talvez eu tenha voado muito cedo. Mas antes de voar, claro, eu não havia pensado nisso.
Eu observava tudo e todos ao meu redor e voar parecia ridiculamente fácil. Aliás, era a única coisa que parecia fácil. Matar a fome era difícil, ter carinho parecia impossível e, mesmo sem lembrar do meu passado, eu tinha plena consciência de que não era tão novo. Eu tinha plena consciência de um passado, talvez o meu, talvez de tudo, mas minha memória vinha em peças impossíveis de encaixar.
Claro que eu não tinha ideia do que era nascer mas, logo após ter nascido, olhei para baixo. O mundo parecia imenso, cheio de coisas, ao contrário do que eu via acima. Acima um escuro desenhado com muitos pontinhos, algumas nuvens. Abaixo, muitos detalhes: formas geométricas, coisinhas caminhando entre as formas geométricas, coisinhas de vários tamanhos.
Eu também não sabia o que era beira, mas eu estava à beira de algo. Era à beira de uma decisão. E eu sabia muito menos sobre o que era esperar. Saltei naquele espaço que parecia imenso e que, em poucos segundos, me fez entender o que é a dor, a dor profunda. Primeiro a dor do frio profundo de uma noite chuvosa, depois o calor que, cozinhando qualquer pequena parte do meu corpo exposta ao sol, me acordava do sofrimento para a busca de pequenos espaços de sombra onde a dor doía um pouco menos.
Nessa angústia passei dias. Alguns seres olhavam pra mim, sentiam medo, me cutucavam como se para saber se eu ainda estava vivo. Eu procurava sempre a sombra para o calor doer menos, para os cutucos doerem menos.
Eu devia estar em algum momento importante pois havia um som de crianças, abaixo de onde eu estava, cantando músicas de natal. Eu não sei ainda o que são crianças e nem o que é o natal, mas era o que eu ouvia porque os seres que me cutucavam para saber se eu estava vivo comentavam sobre isso. E tinham medo que eu os atacasse.
Chegou um momento em que eu parei de sentir dor, parei de fugir do sol. De longe vi meu corpo colocado em uma sacola plástica e jogado em uma lata de lixo. Aí eu soube que eu era um morcego preto, nojento. Buscando a consciência do meu passado veio a memória! Já fui chamado de anjo em outra forma e cor.
Voar parecia ser muito fácil!